O "EU" NO TRÂNSITO

quinta-feira, 26 de novembro de 2009 Karine Winter


Uma reflexão sobre o comportamento individual versus comportamento coletivo. Quem trabalha na área de trânsito depara-se freqüentemente com queixas do tipo: "Este Código tem vários problemas"; "estas multas são absurdas", "placas de sinalização erradas ou depredadas", "pardais" (controladores de velocidade) interrompendo a fluidez do tráfego", "guardas corruptos", "taxistas malucos", "pedestres ignorantes", etc... 

Ah... Como é difícil ouvirmos algo diferente de queixas individuais quando o assunto é trânsito. Parece que as pessoas tem dificuldades de perceberem que, nesta área, o comportamento coletivo (segurança, fluxo de tráfego) é muito mais importante do que necessidades individuais (acesso facilitado, conveniências pessoais), já que o objetivo maior do sistema de trânsito é a segurança viária e a preservação da vida. 

Saio mais tarde de casa (porque posso dormir mais um pouco) e quero exigir fluidez num espaço compartilhado onde outros também decidiram dormir até mais tarde. Reclamo quando o taxista não quer estacionar em local proibido (que facilite o meu acesso), mas fico louco quando alguém estaciona em frente à minha garagem. Passo o sinal vermelho (por medo de "assalto") mas fico indignado quando alguém atropela meu parente, ultrapassando o sinal. Dirijo alcoolizado (me sinto em perfeitas condições), mas chamo de assassino do volante àquele que mata embriagado um amigo meu. Reclamo dos controles de velocidade mas critico o sistema de saúde pela falta de leitos nos hospitais públicos (a maior parte das ocupações de leitos hospitalares é de acidentados no trânsito). Atendo o celular (quando poderia deixá-lo desligado enquanto dirijo) mas critico diariamente as "distrações" de outros motoristas ao volante. Limites de velocidade, multas pesadas, leis, - acredite - elas não foram criadas porque alguém resolve colocar obstáculos na vida de pacatos cidadãos. 

Geralmente são fruto de estudos aprofundados discussões amplas em busca de segurança, fluidez de tráfego, preocupações ecológicas, entre outras que visam o bem comum. Por que é tão difícil abdicarmos de mordomias individuais em prol de um bem maior, em favor de necessidades comunitárias, em respeito a vida do nosso semelhante? Parece tão difícil entender que nas vias públicas o espaço necessariamente tem que ser compartilhado. E mais ainda, tem que ser compartilhado com todos os meus compatriotas, sejam eles pobres ou ricos, brancos ou negros, cultos ou analfabetos, pedestres ou motoristas, ciclistas ou motoristas profissionais, jovens ou idosos, etc. Visto desta forma, o trânsito nos parece um ótimo espaço para o exercício da democracia e da cidadania, palavras tão utilizadas em nossos discursos mas tão pouco exercitadas em nosso dia a dia. 

Falamos da cidadania no café da manhã em família, mas minutos depois quando colocamos "o pé para fora de casa" começamos imediatamente a colocar os nossos direitos acima dos demais cidadãos. E aí, a culpa é do governo? Será que é o governo que tem que ensinar ao meu filho que o direito dele termina quando começa o do outro? Sim, o difícil é delimitarmos quando iniciam ou terminam os nossos direitos. Será tão difícil ou basta nos imaginarmos do outro lado? Acredito firmemente que a busca pela qualidade no trânsito deve iniciar-se no resgate ao respeito, consciência da cidadania e educação de base. Passa necessariamente pela substituição do EU pelo NÓS no trânsito.


(Artigo de Márcia de Fátima Plonka. Psicóloga Especialista em Educação e Segurança de Trânsito.)